quarta-feira, 12 de março de 2008

MONTENEGRO IV - A ULTIMA BATALHA


Visto ao longe, Luís encarnava a imagem fiel de um dos miseráveis de Vítor Hugo. Exasperava desesperadamente, como se procurasse romper lanços feudais que o amarravam desde tempos históricos imemoriais. Cobria-lhe o olhar um brilho próprio das classes revolucionárias, do espírito de Rosseau e Montesquieu, incansável na busca de uma perfeição que se situa algures na terra, entre o espírito controverso dos homens e a exactidão dos números. Lutava contra a química e as necessidades básicas de um corpo em acelerada decomposição, tal como o condenado procura evitar desesperadamente as galés.


Era um obstinado Jean Vayean, quase sufocado pela estrutura inabalável dos seus princípios.



No cubículo, não era mais nem menos do que Rosa, toda encolhida numa minúscula caixa de cartão, ao sabor do vento, dos dissabores urbanos e da crueldade indistinta. Também ele podia conhecer o que era não ter dignidade ao olhar dos outros, ser pontapeado no estômago sem piedade, ver a casa destruída por uma acto de pura excitação vândala.



Paris deve ter sido assim, em 1789. Assim a Bastilha, na véspera de ser violentamente assaltada. A resistência do que sempre foi e nunca imaginou sequer poder deixar de ser é talvez o mais feroz dos inimigos. Só ultrapassada claro, pelo espírito do que nunca foi e sempre lhe foi barrado ser ou sonhar ser. Assim Luís, envolto na névoa de cefaleia a que se habituara, no odor pesado de transpiração, com o sorriso de Mordechai na carteira e na mente.
Enquanto pedalava, não era mais do que todos aqueles que, no rigoroso Inverno de Varsóvia, seguiam Mordechai embalados numa utopia dramática: a de que a racionalidade, mesmo quando escassa e impotente, pode vencer a brutalidade, mesmo quando massificada e poderosa. Enquanto agonizava de dúvida, de frustração e de medo não era mais do que aqueles que acabaram por sucumbir à indiferença da pólvora, sempre ao serviço de quem a detém.



Queria vencer pela virtude, pela história em si mesma, pelo destino que acreditava jogar-se ali, na exaustão dos seus músculos (...). Na sua alma, porém, a transformação desejada operava-se lentamente, deixando que o sorriso de Mordechai e a serenidade cândida de Cláudia substituíssem progressivamente a combustão de ódio e de vingança.










3 comentários:

Anónimo disse...

Que te posso dizer? Recordar? O que? Sabes que tens um magnifico dom de Deus para a escrita...

Maravilhoso!

Vanessa (Mem-Martins)

Anónimo disse...

Fenomenal...

Muitos beijinhos e continua a escrever...

Ana (Escola de Santa Maria - Sintra)

Anónimo disse...

Muito bem, tenho de dizer que admirei cada um dos excertos colocados neste blog...será concerteza um livro muito muito especial...como o autor :)

Lá nos encontraremos no lançamento...

Sérgio (Mem Martins)