terça-feira, 22 de janeiro de 2008

MONTENEGRO III - Quero morrer de pé



“Ao lançar um olhar desinteressado na direcção da porta de entrada, deparou-se com uma visão da perfeição: acabada de entrar, uma mulher de cabelos castanhos longos, encaracolados, andava em passos harmonizados até ao balcão, envergando umas botas de cowboy castanhas, de couro. As calças apertavam-se incondicionalmente ás pernas, umas pernas solidamente seguras e ciosas das suas curvas inultrapassáveis, num corpo que se definia mais acima, onde uns seios salientes forçavam uma fina camisa de algodão toda branca, colorida com uma espécie de talismã que se segurava no pescoço. Por momentos, parara de respirar e observava apenas como os longos caracóis continuavam num rodopio incansável ao sabor do vento que parecia querer, também ele, acompanhar este anjo negro. Algo de perverso, de extremamente diabólico emanava desta mulher, desta cara tão angélica, demasiadamente angélica. Algo no seu corpo denunciava uma tenacidade carnal sem limites, um desejo sem fim de ser possuída, de fruto proibido. Um misto de anjo e de prostituta sintetizadas no mesmo corpo, expressando-se sobre um sorriso comum, magnético. Uma fada do desejo e do pecado.

Luís voltava a concentrar-se nos artigos. Lia qualquer coisa relacionada com umas marcas na língua, que pareciam surgir à medida que o sistema imunitário se ia enfraquecendo e a que os médicos chamavam de “candidíase oral” ou, mais grave, “Leucoplasia pilosa oral”, mas possuía pouco poder de concentração e rapidamente voltava a erguer o olhar para a mulher que, de vez em quando, lhe premiava também com um olhar de soslaio, desde os seus olhos castanhos pequenos mas brilhantes, como todos os grandes mistérios da vida.

Era como se dois mundos se enfrentassem e ele fosse um mero espectador, ali, com a sua chávena de café fumegante na mão. De um lado a doença, com o seu espectro de sofrimento e de degradação do corpo. Do outro, a beleza, a sensualidade, embora revestidas de pecado e de uma atracção mortalmente sexual. E rapidamente todo o seu corpo estava domado por um sentimento de desejo profundo, de jactância e de domínio sobre o mundo. Era como se à sensação de liberdade de há momentos se unisse agora uma sensação de domínio do mundo, de livre expressão da carne e de reino do desejo.

Luís voltou o olhar para a vitrina. Estava um dia turbulento de Inverno e o vento não dava tréguas a nada nem ninguém. Ele não daria tréguas à doença nem à humilhação. Talvez ali, enquanto aquelas pernas semi-dobradas no balcão o enfeitiçavam sem limites, decidiu que não mais voltaria ao médico ou àquele gabinete branco no Hospital de S. João e por isso mesmo tirou um guardanapo de uma das caixinhas e escreveu, orgulhosamente, quase num estado febril, “Quero morrer de pé!”.










7 comentários:

Anónimo disse...

Acabei de ler agora mesmo. Uma vez mais fantástico. Tens uma escrita impressionante, refrescante e envolvente.
Não vais gostar disto, mas acho que devias definitivamente abandonar a actividade jurídica e dedicar-te às artes.

PARABÉNS, A MENOS QUE ALGO DE ALGO DE ANORMALMENTE GIGANTE ACONTEÇA, ÉS SEM DÚVIDA A REVELAÇÃO PORTUGUESA DE 2008. :))

Continua…não pares agora!

Verónica Castro

Anónimo disse...

Bem...Completamente sem comentários!

Só te digo que me arrepiei, mais uma vez, com o que li... Vá manda o livro todo! Já começa a ficar dificil de aguentar a ansiedade e ver o que acontece ao Luis... E quem será esta mulher? Será a Cristina? Será a Rosa?...

Muitos beijinhos e deixa ler mais!!!!

cátia Rocha Santos

Anónimo disse...

Apenas digo isto: Fabuloso! Um grito sensacional que Portugal estava mesmo a precisar!!!!

Fabio Menezes, Porto (Antas)

Anónimo disse...

A vida é cheia de obstáculos e é preciso supera-los! Tu, André, tens superado muitos...e a escrita deste livro mostra grande maturidade e elevado nível de escrita! Este livro promete...sem dúvida!

Grande Abraço, Daniel S

Anónimo disse...

Um grito contra a doenca dos nossos dias. Que tambem tu, Andre, sejas um apostolo nesta luta...

um abraco e toda a sorte do mundo

Floriano

Anónimo disse...

Massa de autor e de homem...ohhh eu tambem quero ir ao lancamento e nao recebi convite...quero muito ir mesmo...

Vc eh casado rapaz? Tenho possibilidade?

Joaninha, Alvor

Anónimo disse...

Já me tinham dito que ia sair muito em breve o primeiro romance português sobre ciclismo...acho que é uma mais valia para a modalidade e para todos os que, como eu, são apaixonados incondicionais...
Também vou aproveitar este livro para voltar à leitura...e talvez até à estrada :))

um abraço e toda a sorte do mundo,

Rui Paneira, Vila Real