quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

MONTENEGRO I - A surpresa na Vuelta














"A tarde encerrava-se a si própria sem entusiasmo. Era um dia tosco e o seu fim teria de ser tosco também. Só não era tosco o ambiente no cimo da montanha Los Rios[1], nas Astúrias espanholas, onde uma significativa multidão se apinhava, aos gritos e sobressaltos, enquanto uma mão cheia de pobres ciclistas, a suar e sem ânimo na expressão, continuavam a sua ingrata pedalada montanha a cima.
Os rostos estavam pálidos e doridos, mostravam dores que só o homem pode suportar e sentimentos que só Deus poderá conhecer. À medida que os minutos se ultrapassavam também, lentos de uma lentidão de sempre, a caravana de homens aumentava, era agora um autêntico festival de bicicletas, um amontoado de alumínio e alta tecnologia, que parecia ser indiferente aos gritos da multidão, aos salpicos constantes de água, ao massiço dos automóveis e das roulottes que haviam estacionado mesmo na beira da estrada íngreme e pareciam falsamente acompanhar a subida dos ciclistas (...)."


"O céu, esse, parecia invadido da mesma tristeza, ou da mesma emoção surda, como se os seus gritos tivessem também ficado suspensos por algo de extraordinário. Era de facto algo de extraordinário que se passava em Los Rios aquele final de tarde e todos tinham, de certa forma, consciência desse facto, todos sentiam estar a ser parte da História, ou pelo menos de uma qualquer história seguramente importante.
Uns 30 metros antes da meta, os músculos levados ao limite do trabalho e da exaustão eram visíveis nas pernas de Luís, os próprios músculos da cara estavam terrivelmente tensos, como um trovão que se prepara para rebentar em pleno céu. Imaginava-se o novo Napoleão das montanhas, coroando-se imperador a ele próprio sob o olhar incrédulo da multidão, e uma sensação de súbito e intenso prazer alastrava-lhe ao cérebro, amortizando, de certa forma, a dor e a tensão da subida. Pensamentos de vingança, de vingança contra não sabia bem quem ou o quê, mas seguramente contra toda a sua vida e todos aqueles que o queriam minimizar ali, naquelas colinas, para as quais se havia preparado meses a fio, dias e dias de provação.



[1] Nome tradicional, entre os mais antigos habitantes das Astúrias, dado ao Alto del Angliru, uma fase marcante da Volta a Espanha em bicicleta (...)".


6 comentários:

Anónimo disse...

"coroando-se imperador a ele próprio sob o olhar incrédulo da multidão"

A tradução do que move um atleta, todo o esforço é válido se ele conseguir provar a si e aos outros o quanto é capaz. O prazer interior de ser maior, de estar acima... incrédulo do que ele mesmo pôde alcançar e deslumbrado com a reação da multidão.
Massa, isso. :)

IIMPRESSÕES DE FIM DE VIAGEM disse...

Sinceramente, nunca esperei. Adoro desporto e adoro romances. Nunca pensei ver uma sintese tao perfeita entre a velocidade do desporto e a profundidade do estilo literario

Anónimo disse...

Uma escrita magnifica meu amigo.
Se de facto Luis Montenegro for o novo Rocky Balboa europeu, so posso desejar-te tanto sucesso como a Sylvester Stallone...

Forca ai e muito sucesso. Eu nao vou perder!

Julio Costner, Amesterdao

Anónimo disse...

Andre Ventura, oh my God it is really you...your face, your book, your words...

My portuguese is not very good, but I can understand that it is deep literature, a fantastic story and an amazing and trully necessary message.

great sucess for you

Deborah

Anónimo disse...

A história é tocante....e a analogia muito boa entre a luta contra o hiv e o esforço de um atleta em ganhar uma corrida. Muito Bom livro e o autor com grande futuro

Anónimo disse...

O livro está arrebatador! Uma séria lição de vida. Uma luta admirável. A escrita está muito boa! Grande autor!

Ana Rui